Covid-19: Memória, verdade e justiça ainda esperam por ações concretas
- Mariana Duarte Cruz
- 14 de mar.
- 5 min de leitura
Reunião do Conselho Nacional de Saúde reforça a necessidade de responsabilização, reparação às vítimas e fortalecimento do SUS

Cinco anos se passaram desde que a Covid-19 foi declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, mais de 725 mil vidas foram perdidas, famílias foram devastadas, milhares de crianças ficaram órfãs e o país testemunhou a maior crise sanitária da sua história. Mas, apesar do tempo e das inúmeras discussões promovidas em espaços institucionais, a sensação de impunidade ainda paira sobre aqueles que perderam seus entes queridos e sobre todos que sofreram as consequências do caos instaurado.
Esse foi o tom do debate realizado no Conselho Nacional de Saúde (CNS) nesta quinta-feira (13) que reuniu especialistas, ativistas e entidades de vítimas para cobrar medidas concretas de reparação e responsabilização dos responsáveis pelo agravamento da pandemia. Em meio a reflexões sobre o impacto da desinformação, do negacionismo e da omissão do governo da época, o encontro reforçou a necessidade de um compromisso real do Estado com a memória e a justiça, para que tragédias como essa não voltem a ocorrer.
A pandemia desvendou uma prática genocida no Brasil
A pandemia no Brasil não foi apenas uma crise sanitária; foi também uma crise de governança, marcada por negligência, desinformação e decisões políticas que aprofundaram o desastre. Desde os primeiros meses, enquanto países adotavam medidas rigorosas para conter a disseminação do vírus, o Brasil seguiu um caminho contrário: incentivou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada, desprezou as recomendações científicas e minimizou a gravidade da doença.
A Coordenadora Nacional da Associação Vida e Justiça e conselheira no CNS, Rosângela Dornelles, enfatizou que o país ainda precisa enfrentar sua própria história e cobrar justiça pelas vidas perdidas.
“Foi a pandemia que trouxe e desvendou toda a prática genocida que o governo anterior teve em relação à população brasileira.”
Rosângela relembrou o papel dos movimentos sociais na defesa das vítimas e destacou que, cinco anos depois, a luta continua para garantir que a verdade prevaleça e que os responsáveis sejam devidamente punidos. Ela também ressaltou a importância da criação do Memorial da Covid-19, um espaço que servirá para honrar aqueles que se foram e para reforçar o compromisso de que erros semelhantes não se repitam.
“A gente não pode esquecer o reconhecimento pelo crime que o Estado teve da ausência e que gerou toda uma demanda, principalmente da responsabilização dos culpados e a reparação desse processo ainda muito vigente.”
Os órfãos da Covid-19 e a luta por direitos
Entre as cicatrizes mais profundas deixadas pela pandemia está a orfandade, uma consequência devastadora que atingiu mais de 150 mil crianças no Brasil. Para muitas delas, a perda dos pais significou o abandono, a insegurança financeira e a ausência de um suporte adequado do Estado.
O coordenador executivo da Coalizão Orfandades e Direitos, Milton Alves Santos, destacou que essas crianças seguem desamparadas por políticas públicas e alertou para a necessidade de uma resposta imediata.
“A coalizão tem tentado superar a ideia de que a perda de um cuidador para uma criança e um adolescente pela morte desse cuidador é um fato da vida natural. E sendo um fato da vida natural, ela deve ser vivida como algo natural e, portanto, que não exige necessariamente proteções e atenções, pelo menos essa é a visão do senso comum.”
A realidade dessas crianças evidencia que a pandemia não foi apenas um evento do passado, mas um problema cujas consequências ainda persistem. Milton alertou para o risco de que a orfandade seja tratada como uma questão privada, sem a devida atenção governamental.
“Perder um cuidador significa perder imediatamente metade da renda. Isso não é um detalhe num país miserável e extremamente desigual para essas pessoas que vivem com essa renda.”
Fake news e desinformação: um crime ainda sem punição
Além da crise sanitária, o Brasil enfrentou uma epidemia de desinformação. Fake news circularam livremente, desacreditando a eficácia das vacinas, promovendo medicamentos ineficazes e incentivando comportamentos que colocaram milhões de pessoas em risco. A propagação dessas informações falsas não foi acidental: ela foi promovida, incentivada e até financiada por grupos políticos e empresariais com interesses escusos.
A advogada e coordenadora jurídica da Associação Vida e Justiça, Bruna Morato, enfatizou que o impacto das fake news foi devastador e que a responsabilização por esses crimes ainda não aconteceu.
“A produção de fake news compôs uma ideologia, uma estratégia de necropolítica que favoreceu a disseminação de notícias falsas.”
Ela relembrou o caso da Prevent Senior, operadora de saúde denunciada por realizar experimentos com pacientes sem consentimento.
“A CPI da Covid trouxe à tona um dos casos mais graves da nossa história sanitária. A denúncia de que uma operadora de saúde utilizou pacientes como cobaias, sem o devido consentimento, deveria ter sido um ponto de virada na responsabilização dos culpados. Mas, cinco anos depois, pouco avançamos.”
O encontro no CNS também trouxe à tona a necessidade de políticas públicas que garantam reparação às vítimas e preservação da memória. O Ministério da Saúde anunciou a construção do Memorial da Covid-19, que será erguido no Rio de Janeiro, mas há uma preocupação de que essa iniciativa seja insuficiente diante da magnitude da tragédia.
A representante da Avico (Associação de Vítimas e Familiares da Covid-19), Fernanda Natacha Bravo Cruz, que perdeu o pai para a Covid-19 aos 55 anos, reforçou que o luto das famílias das vítimas não pode ser tratado como um assunto privado, e sim de responsabilidade do poder público:
“Cada pessoa que morreu tinha uma história, uma família, um futuro que foi interrompido. O Estado deve mais do que um memorial. Deve reconhecimento, reparação e justiça (...) A gente está falando de um país que perdeu 715.295 pessoas e não deu a chance das viúvas e filhos de terem acesso à saúde mental. Um país que segue com milhões de pessoas ainda em situação de Covid longa e não teve acesso a uma linha de cuidado para pessoas com sequelas”.
Com os diálogos durante a reunião do CNS, ficou ainda mais evidente que, mesmo após cinco anos do início da pandemia, ainda há um longo caminho a percorrer para que as vítimas e seus familiares tenham justiça. Embora o debate sobre a tragédia sanitária esteja presente em diferentes espaços institucionais, as medidas concretas para responsabilização dos culpados e reparação dos danos avançam de forma lenta. Diante disso, a reunião resultou em uma série de encaminhamentos para transformar este importante debate em medidas efetivas. As principais deliberações incluem:
✅ Criação de um grupo de trabalho para monitorar processos judiciais relacionados à pandemia e pressionar pela responsabilização de gestores e empresas que agravaram a crise sanitária.
✅ Mobilização para garantir assistência social e psicológica para os órfãos da Covid-19 e suas famílias, garantindo direitos e suporte adequado.
✅ Apoio à implementação do Memorial da Covid-19, garantindo que a história das vítimas seja preservada e que esse espaço tenha participação ativa da sociedade civil.
✅ Intensificação das ações de combate à desinformação, reforçando a importância da ciência e da transparência na comunicação pública, especialmente no enfrentamento de novas crises sanitárias.
✅ Reforço na cobrança por políticas de fortalecimento do SUS, garantindo investimentos para melhorar a estrutura da saúde pública e evitar o colapso em futuras pandemias.
A Associação Vida e Justiça reforça a urgência de transformar o discurso em medidas efetivas, e contará ainda mais com o apoio e o compromisso do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e da nova gestão do Ministério da Saúde para que, enfim, a memória das vítimas seja honrada com justiça e reparação.
Assista a reunião completa no Canal do Conselho Nacional de Saúde: https://www.youtube.com/live/9hFfIR9u7EM?feature=shared
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